Alvo de críticas de parlamentares insatisfeitos com o repasse de recursos de emendas, Nísia Trindade passou por dois chacoalhões nesta semana em sua gestão à frente do Ministério da Saúde. O mais recente envolveu a publicação de uma norma técnica com esclarecimentos sobre o aborto legal. Diante da reação negativa da ala conservadora no Congresso, a pasta decidiu retirar a nota, afirmando ser necessária maior discussão.
O documento suspenso, assinado por secretários do ministério, abolia uma polêmica restrição que limitava o aborto legal até a 21ª semana e 6 dias de gestação. O texto publicado pela pasta argumentava que o Código Penal não limitava o tempo para a realização do aborto. Destacava, ainda, que o direito deveria ser garantido de forma segura, íntegra e digna.
A nota suspensa é considerada uma importante retomada dos direitos das mulheres. Quando foi editada, a orientação que limitava o prazo para interrupção da gravidez foi apontada como um retrocesso e um limitador para uma garantia assegurada por uma lei que está em vigor há mais de 80 anos. Quanto mais exigências são colocadas, mais difícil para uma mulher em situação já fragilizada conseguir assegurar seus direitos.
São poucos os centros que realizam aborto legal. São muitos os médicos que se negam a realizar o procedimento em estabelecimentos públicos, alegando objeção de consciência. Mulheres vítimas de estupro, com a vida em risco ou que têm comprovada a gestação de um bebê com anencefalia têm de, além de lidar com as próprias aflições, enfrentar um atendimento que está longe de ser acolhedor e correr contra o tempo.
A nota, portanto, apenas recuperaria um terreno em busca de um atendimento seguro para as mulheres. A forma como foi feita, no entanto, sem um diálogo anterior, trouxe margem para as críticas. A retirada apressada enfraquece um debate necessário. Mais ainda: dá argumentos para os críticos de um tema que, embora devesse ser tratado como de saúde pública, é usado como bandeira ideológica.
Hospitais do RJ
O episódio ocorre dias depois de outra mostra de descompasso no Ministério da Saúde. Também nesta semana, outra aresta considerada desnecessária foi criada e, desta vez, gerando descontentamentos entre a ala defensora do governo.
Uma portaria publicada na última quarta-feira (28), a de número 3.208, alterou a estrutura do Departamento de Gestão Hospitalar no Estado do Rio de Janeiro. Com a mudança, que passa a vigorar em 13 de março, compras dos hospitais federais instalados no Rio passariam a ser feitas de forma centralizada. A ideia é ganhar escala, ter maior controle de preços nas aquisições e reduzir desperdícios.
A medida, considerada à primeira vista oportuna e lógica, não foi antecedida de discussão. Surpresos, os diretores dos hospitais atingidos pela mudança enviaram uma carta a Nísia, criticando a forma como o tema foi conduzido e, ainda, argumentando que a partir de agora suas atribuições passariam a ser meramente assistenciais e ordenadoras de despesas.
“O que nos causa estranheza inicialmente, sra. Ministra, é o nosso absoluto desconhecimento das modificações hoje trazidas a público, sobretudo por seu vulto e impacto em cada um dos nossos HFs (hospitais federais)”, afirma o documento. Eles sustentam ainda que numa administração democrática e popular uma modificação dessa natureza é precedida de diálogo.
Hospitais federais do Rio são considerados um problema histórico para o ministério. Há dificuldades na realização de compras, contratações de pessoal – denúncias sobre superfaturamento e desperdícios também são frequentes, de forma a reduzir a qualidade e eficiência do atendimento para a população.
Há, contudo, a percepção de que as discussões devam ser feitas de forma paulatina. Mais ainda: precedidas de negociações e debates. E a crítica ficou clara em uma mensagem da Coordenação Estadual do Setorial de Saúde do PT.
Nísia Trindade destacou-se na liderança da Fundação Oswaldo Cruz pela sua capacidade de negociação. O cargo que ocupa é alvo constante de cobiça de parlamentares do centrão. Ao longo do último ano, mostrou prestígio com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com sociedades científicas e sociedade civil organizada.
Esta semana, no entanto, foi marcada por descompassos. E quanto mais falhas acontecem, maior tem de ser a blindagem.
Lígia Formenti – Editora e analista de Saúde do JOTA