O lastimável estado da violência e da segurança pública no Rio de Janeiro já não é novidade há décadas. A piora da situação nos últimos anos e a indiferença das autoridades estatais, especialmente daquelas que compõem o atual governo do estado — omissão tida por alguns como um indício de conivência — torna o panorama ainda mais trágico.
Nas últimas semanas, foi possível acompanhar mais uma série de desdobramentos da situação vivida pelo Rio de Janeiro. Recentemente, o país pôde testemunhar o assassinato de médicos que acompanhavam um congresso na cidade — incluindo o irmão da deputada federal Sâmia Bomfim. As investigações apontam que os homicídios ocorreram porque as vítimas foram confundidas com membros de organizações criminosas cariocas. No dia seguinte, os corpos dos possíveis assassinos foram encontrados e os investigadores acreditam que foi uma retaliação da organização pelo “equívoco” cometido pelos culpados.
A população do Rio continua diariamente refém da brutal violência, imposta tanto por organizações criminosas quanto pelas forças de segurança pública do estado. As ações de criminosos e a continuação e o suposto “endurecimento” da falida política estatal de segurança pública, da perversa forma habitual, puderam ser acompanhados recentemente. Ilustrações dessa falência não faltam, pelo contrário, são diversas. Os suspeitos do assassinato dos médicos paulistas, por exemplo, já eram suspeitos de envolvimento em um triplo homicídio em uma das ruas mais violentas da cidade, em julho na Zona Oeste.
Em meio a tantos fracassos, “showmício de extermínio”, que, como lembra Orlando Calheiros, ocorrem desde a ditadura e são comuns. Enquanto são utilizados para criar a “falsa impressão” de ação estatal, não parecem surtir efeito algum contra o problema, a não ser a sua migração e posterior agravamento. Nesse contexto mórbido, a sequência de atrocidades se retroalimenta, reforçando a notória situação de barbárie.
Durante a redação deste texto, houve uma série de desenvolvimentos que tanto ilustram a situação descrita quanto expõem a total falta de proposta para lidar com a questão. Após a morte do líder de uma organização criminosa, mais de 30 ônibus e um trem foram incendiados no Rio de Janeiro. Mais uma vez, de forma previsível, um novo “showmício de extermínio”, com discursos inflamados, e vazios, contra o crime organizado, com a participação central do governador Cláudio Castro, que, momentos antes, celebrava a morte do miliciano, enquanto “a área mais populosa do Rio estava paralisada pela força do crime.”
Em coluna anterior, expusemos a complexidade de temas voltados à segurança pública no país, com a participação da professora Ludmila Ribeiro. No texto, tratamos como a lógica estatal remonta a fatores estruturais arraigados e, evidentemente, sem soluções simples. Nesse sentido, em todo o país, o processo de refundação dessa lógica perversa atual passa por um “um esforço coletivo, que envolve não apenas as instituições, mas também a participação ativa da sociedade civil na defesa dos direitos e na busca por transformações profundas.”
Afirmamos, ainda, com a participação da professora Letícia Kreuz, que vivemos uma oportunidade ímpar para discutir esses e outros temas, com o esforço do retorno à política observado após os atos do 8 de janeiro. Um retorno que se faz necessário tanto para que ocorra o debate democrático mais amplo quanto para se discutir a questão da violência e da segurança pública, e para que as reformas necessárias sejam de fato implementadas.
Na coluna deste mês, convidamos o professor Christian Lynch para contribuir com esse debate, com uma perspectiva diversa sobre a temática, com foco específico no estado do Rio de Janeiro. Christian Lynch é professor de Pensamento Político Brasileiro no Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa. Lynch pesquisa tópicos relacionados à Ciência Política, História e Direito há mais de quinze anos, com foco específico em teoria política moderna, pensamento político brasileiro e história do direito, e tem profundo interesse em questões relacionadas ao Rio de Janeiro—tema que discute frequentemente em seu perfil no X (antigo Twitter). De tal forma, é um dos especialistas mais bem preparados para discutir o tema.
Assim, partindo do momento fundador do Rio de Janeiro contemporâneo, com sua fusão imposta pelos militares no auge da ditadura, procuramos discutir a atual situação do estado, com foco na violência e segurança pública. Por fim, buscamos oferecer nossas contribuições para o debate acerca dos temas, que carecem de transformações profundas na forma como são abordados pelo Estado.
Fusão: o “golpe de espada” como momento fundador
Em agosto, o presidente Lula se encontrou com o prefeito Eduardo Paes, no Rio de Janeiro, em mais um gesto de aproximação do governo federal, após um novo financiamento do BNDES, desta vez, na casa dos R$ 700 milhões, para obras de infraestrutura na cidade. Na ocasião, o presidente ressaltou o desejo do governo federal em “adotar” o Rio de Janeiro para a realização das obras necessárias, “porque o Rio tinha perdido muito com a mudança da capital”.
Desde a transferência da capital para Brasília em 1960, o Rio de Janeiro enfrentou uma série de desafios e transformações que reconfiguraram sua posição no cenário político, social e econômico nacional. Nenhuma outra cidade atravessou tantas mudanças provocadas por decisões federais unilaterais. A perda de status e recursos perpetrou consequências socioeconômicas à cidade, exigindo constantes intervenções do Governo Federal, como uma ferida que se recusa a cicatrizar.
A “situação anômala” do Rio de Janeiro não se deve apenas à sua reconfiguração para Estado da Guanabara, em 1960. Além de lidar com a transferência da capital para o remoto planalto central, o Rio teve que enfrentar a fusão com o antigo estado fluminense. Essas ações se alinhavam à outras medidas que buscavam sufocar a pulsão democratizante da experiência da República de 1946, tais como a repressão a movimentos sociais, a cassação de lideranças e a dissolução de partidos políticos.
Em 1964, foi para o Rio de Janeiro que marchou o general Olímpio Mourão Filho Em 1968, foi do Palácio Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, que o general Costa e Silva assinou o AI-5 no apagar das luzes da democracia. Posteriormente, o novo “super estado” do Rio de Janeiro, criado em 1975, a partir da fusão com o estado da Guanabara, foi a saída encontrada pela Ditadura Militar para “sufocar” a capitalidade do município e estancar a oposição do MDB, que tinha o antigo estado guanabarino como trincheira de resistência à Arena.
Em um único golpe de espada, os militares anularam parte da oposição, desmantelaram uma cidade que fora capital por mais de dois séculos, criaram um estado biônico e economicamente anêmico e consolidaram a encastelada Brasília como capital. Não à toa, o primeiro presidente a governar de Brasília foi o general Ernesto Geisel, no auge da repressão da ditadura. A “criatura” minotaurica, criada em laboratório pelos militares por vontade do general Ernesto Geisel, nunca foi devidamente reavaliada pela democracia, que se limitou a “enxugar gelo”, com recorrentes intervenções federais para socorrer o desforme “super estado”, historicamente dependente de recursos federais.
A falta de planejamento, um tanto quanto intencional, agravou ainda mais o problema do estado. A formação histórica e econômica do Rio de Janeiro se difere fundamentalmente daquelas de estados como São Paulo e Minas Gerais. Sua capital nunca dependeu do desenvolvimento de uma estrutura produtiva robusta ou marcada identidade regionalista. Em vez disso, seu crescimento esteve atrelado à presença do aparato estatal e sua capacidade de distribuir e atrair recursos e investimentos. A elite carioca também nunca cultivou uma cultura regionalista. A política local sempre operou como um “espelho” da esfera nacional ou como seu oposto, em parte pela pouca cultura carioca em tratar seus problemas localmente.
A catástrofe resultante da fusão já havia sido antecipada nos artigos de jornais de Eugênio Gudin, ainda em 1973. Segundo o economista, “a união de um Estado do Rio empobrecido com uma Guanabara combalida pelo esvaziamento decorrente da transferência da capital para Brasília” inevitavelmente culminaria em desastre. Não se trava de clarividência. O resultado seria semelhante se Brasília fosse compulsoriamente rebaixada à condição de capital de Goiás. O “super estado”, capaz de fazer frente ao estado de São Paulo, nunca funcionou como imaginado pela dupla Geisel e Golbery. As consequências do projeto seguem afetando o estado em diversos setores, para muito além da violência e segurança pública.
“Eu vejo o futuro repetir o passado”: violência e segurança pública no Rio de janeiro
Quando Cazuza escreveu “O tempo não para”, tinha como foco as contradições que percebia na sociedade de sua época que, mesmo após a ditadura, se mantinha autoritária, moralista e conservadora. Um tanto quanto anacronicamente, a letra também parece adequada para descrever a abordagem estatal à violência e à segurança pública no Rio de Janeiro, há décadas, “um museu de grandes novidades”.
Os vácuos de poder aprofundados pela fusão em 1975 tornaram o estado do Rio de Janeiro solo fértil para o desenvolvimento de organizações ilegais. As origens de organizações criminosas do estado, como o Comando Vermelho e as milícias, remontam ao período da ditadura militar. A primeira organização criminosa tem sua origem na prisão de Ilha Grande, na década de 1980, dando origem, posteriormente, à outras organizações, como a Amigos dos Amigos e o Terceiro Comando Puro. As milícias, por sua vez, umbilicalmente ligadas a organizações criminosas, foram gestadas, comumente, no interior do próprio estado. Atualmente, se estima que quase metade do território da Grande Rio já não está mais sob controle do Estado, e que se encontra sob domínio de milícias, que ampliaram seu território em 378% nos últimos 16 anos.
Uma sequência de governos que ora buscavam soluções para o problema, mas repetiam os erros do passado, ora eram indiferentes ou até se omitiam, com certa conivência, agravou ainda mais a situação do Rio de Janeiro. O atual governador, Cláudio Castro, foi eleito após assumir interinamente o governo com o afastamento de Wilson Witzel, que, basta dizer, extinguiu a Secretaria de Segurança Pública do estado. Ambos compartilham o mesmo discurso vazio de combate ao crime, enquanto as taxas de violência continuam crescendo, ressuscitando, inclusive, estratégias comprovadamente falidas.
Por sua vez, intervenções federais, seguindo lógicas retrógradas, também não traziam avanços para a situação do Rio, mas, frequentemente, apenas mudavam o foco do problema. Apenas nos últimos dez anos, o estado passou por mais de um terço das operações de Garantia da Lei e da Ordem do país. A mais emblemática dessas medidas, certamente, aconteceu em 2018, com a inédita intervenção na Segurança Pública no estado do Rio de Janeiro, onde se aplicou, pela primeira vez, o art. 34º da Constituição Federal. Após uma temporária migração dos índices de criminalidade, a tendência de crescimento anterior foi retomada.
Enquanto os índices de violência, e o controle estatal do Rio diminui, à medida que as organizações criminosas ampliam seus domínios, “enxugar gelo” passou de exceção à regra na política de segurança pública, nos níveis estatal e federal. Na atual conjuntura, afirmar que “O crime organizado que não ouse desafiar o poder do Estado!” apenas reforça a conclusão.
Contribuições para o debate: pontos de partida visando a superação do contexto atual
Propostas que visam a superação da atual situação da violência e segurança pública no Rio de Janeiro têm que levar em consideração o panorama histórico recuperado aqui. Nesse sentido, um possível ponto de partida é a necessária reflexão sobre a posição do estado no contexto nacional. Nesta semana, o presidente Lula acenou para essa necessidade, quando afirmou que:
“O problema da violência no Rio de Janeiro termina sendo um problema do Brasil (…) Vamos usar a estrutura dos ministérios da Justiça e da Defesa para ajudar a combater o crime organizado e a milícia no Rio. Nós queremos compartilhar as soluções dos problemas dos estados com o governo federal.”
Por um lado, a proposta de trazer o debate e possíveis soluções para o nível federal é louvável. Por outro lado, cogitar o uso das Forças Armadas é temerário, a menos que de forma pontual, bem planejada e, claro, com o devido controle civil.
Além do fato de os militares terem gestado uma das causas fundantes do contexto atual, com a fusão, também parecem ter contribuído para seu agravamento ao longo das últimas décadas. A recente tentativa de venda de armas do Exército para organizações criminosas do Rio não foi a primeira. Inclusive, em ocasião anterior, um capitão acusado de negociar com traficantes da Rocinha era conhecido de outro ex-capitão da força, infame por suas defesas de milícias na Câmara dos Deputados.
Ainda nesse sentido, em uma perspectiva mais ampla, defendemos, com o professor Emilio Meyer, a necessidade de superar o paradigma de convocar as Forças Armadas para lidar com crises na segurança pública, inclusive como forma de lidar com o contínuo papel dos militares na política nacional que levou à recente “militarização da política, normalmente por oposição ao Estado de Direito.”
De qualquer forma, como observamos, após décadas de intervenções federais, na segurança pública, com sucessivos empregos das Forças Armadas na saúde, na véspera dos Jogos Olímpicos e nos financiamentos de infraestrutura, como o mais recente, de agosto, deveriam ser pontuais e paliativas. São medidas que repetem o passado, apenas “enxugando gelo”. É necessário refletir sobre as formas de lidar com o problema em sua origem: a fusão imposta pela ditadura.
Nesse sentido, buscamos auxílio no campo que trata exatamente sobre como lidar com os as rupturas residuais de regimes autoritários, a justiça de transição. Na área, é consensual que diversos mecanismos devem ser implementados visando superar os resquícios autoritários — exatamente como observamos no contexto do Rio de Janeiro — incluindo reformas institucionais.
Assim, é possível afirmar que qualquer mudança efetiva e duradoura deva passar por reformar as estruturas herdadas da ditadura. De tal forma, seguindo o exemplo de outros países que passaram por contextos similares, julgamos necessário rediscutir a fusão e a atual “situação anômala” do estado. Como o Rio, após cinco décadas, ainda abriga mais servidores federais do que estaduais e um sem-número de prédios federais abandonados e é objeto de sucessivas intervenções, talvez seja hora de repensar a condição do estado e sua capital.
Felipe Guimarães Assis Tirado – Teaching Assistant, tutor e doutorando em Direito no King’s College London (KCL). Mestre em Direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute. Colunista na Interesse Nacional e aqui no Jota
Christian Edward Cyril Lynch – Professor de Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e da Universidade Veiga de Almeida (UVA). Pesquisador da Fundação Cada de Rui Barbosa, editor da Revista Insight Inteligência e colunista do Canal Meio